23 de novembro de 2024
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Celso e Junko Sato Prado – A Abolição da Escravatura – Santa Cruz do Rio Pardo

Os fazendeiros santa-cruzenses possuíam escravos. Joaquim Manoel de Andrade mantinha grande plantel, outros fazendeiros números menores, mas, todos escravagistas, raros aqueles que não. O padre João Domingos Figueira, presente em Santa Cruz desde 1860 ou 1861, era senhor de escravizados, entre eles a Batistina e o filho Jeremias, que acompanharam o padre desde Cabo Verde-MG, inquestionavelmente desde 09 de abril de 1846, quando o nascimento de Jeremias.

A favor dos escravizados em Santa Cruz do Rio Pardo, portanto, não se podia esperar ações da sociedade e nem da Igreja. Os escravos e os filhos e filhas eram batizados no catolicismo, cujos registros considerados e reconhecidos oficiais que faziam prevalecer direitos de posse; nada mais. Na paróquia de Santa Cruz os escravizados representavam 5,5% da população total.

Negociavam-se negros cativos como mercadorias e animais; negros eram ‘peças’ possuídas nos mercados de transações livres, ajustes particulares e leilões públicos, com taxações elevadas e, além disso, ao proprietário a obrigação de pagar o imposto anual sobre as ‘peças’.

O escravizado Marcelino, negro porto-felicense, 17 anos, foi adquirido de Marcelino Alves de Lara por Bernardino José de Andrade, aos 19 de setembro de 1882, por “um conto e seis centos de réis – 1:600$000”, efetivada em 19 de setembro de 1882, com escritura lavrada em cartório de Santa Cruz do Rio Pardo (CD: A/A).

Muitos escravizados negros eram contrabandeados, mesmo que oficialmente a cessação de entradas deles, no território paulista, ocorresse por ausência de interessados. Os fazendeiros temiam comprá-los por altos preços e, de repente, ver triunfar o movimento abolicionista com prejuízo certo a qualquer momento. Outro motivo de cessação de entrada de escravizados negros estava no uso da mão de obra indígena; os índios aldeados supriam bem os escravos negros e a menores custos.

Da mesma forma, desde 28 de setembro de 1871, pela Lei Imperial nº 2.040 – a chamada ‘Lei do Ventre Livre’, a escravatura negra estava com os dias contados, somente questão de tempo, em verdade, ainda uma longa agonia e sofrimento.

A ‘Lei do Ventre Livre’ também fazia cessar práticas hediondas, que consistiam em obrigar mulheres negras manterem relações sexuais com negros especialmente escolhidos como reprodutores.

Fundo de Emancipação da Mão de Escrava
A Lei do Ventre Livre não tratava apenas do ventre da mãe negra e os cuidados do governo com os “nascidos livres de pais escravos – artigos 1º e 2º.” Certa atenção e verifica-se que, pelo artigo 3º se podia trazer a libertação antecipada do escravizado, mediante quota anualmente disponível do Fundo de Emancipação da Mão de Obra Escrava. De acordo com o Governo de São Paulo, Santa Cruz aderira ao Fundo em 1878, com plano de libertação de 236 [duzentos e trinta e seis] escravos matriculados que seriam libertos, gradativamente, mediante reembolso aos senhores escravagistas, através do município, em cotas anuais (Registros de Governo, 1882/1883: 24 e 26).

Apesar do recebimento já da quarta cota do Fundo de Emancipação da Mão de Obra Escrava, em 1882 Santa Cruz do Rio Pardo ainda não registrara libertação de nenhum escravo, com justificativa quanto a aplicação apenas da primeira cota e que as demais seriam lançadas, conjuntamente, em razão dos baixos valores do referido fundo. Não obstante elevou-se para 253 o número de escravos matriculados em Santa Cruz do Rio Pardo (RG 1882/1883: Mapa S/N, páginas 62-65).

Santa Cruz, para 1886, considerando recebimento de recursos do Império e da Província para libertação de escravos, e declarado apenas um livramento, teve anunciado vistoria, por junta nomeada, para verificação e classificação de escravos efetivamente matriculados no município. O número de escravos inscritos no programa caiu, então, de 253 para 243, com alguns sexagenários (RG, 1882/1883: Mapa S/N 62 e 65).

A libertação legal de escravos sexagenários nem sempre ocorria, mais em razão de pedido do próprio beneficiado, afinal para onde iria ele com avançada idade e sem condições de sobrevivência independente? As próprias entidades envolvidas na libertação de escravos, não estavam preparadas para albergar velhos libertos, nem tinham interesses nos considerados improdutivos.

Os fazendeiros, através do município, mantinham a justificativa que o ressarcimento pela libertação de um escravo não era compensador para o proprietário individualizado.

O governo, em 1887, confirmou Santa Cruz com 306 escravos matriculados, no valor de 121:075$000, valor médio de 702$615 cada ‘peça’ ou escravo a ser libertado (RG, 1887/1888: 19, 5º Distrito), valor médio de mercado.

O significativo aumento de 243 para 306 escravos negros, em 1887, é bastante suspeito, porém nesse mesmo exercício registros oficiais revelam libertação de 100 escravos, pelo Fundo de Emancipação, acrescidos de 1 sexagenário liberto e 3 óbitos (RG, 1887/1888: 28).

– O Jugo do Cativeiro
O negro podia ingressar com processo de liberação, pela compra particular da liberdade ou através de Irmandades, com o dinheiro ‘depositado em juízo’, mas o processo podia ser contestado pelo patrão e isto demorava anos, e durante a tramitação processual, o negro mantinha-se sujeito ao ‘Jugo do Cativeiro’, através de contrato quase sempre.

Concedida a libertação, num dos termos acima, o dono do plantel capitalizava duas vezes, o dinheiro recebido e o lançamento do alforriado no rol dos libertos pelo Fundo de Emancipação; mas era sempre o dono quem decidia a liberdade. Raramente acontecia alforria por algum ato de bravura do escravo – exceto nos tempos da ‘Guerra com o Paraguai’, ou algo que sensibilizasse o patrão.

O negro flagrado delituoso durante o ‘jugo do cativeiro’, por qualquer motivo, retornava ao regime da escravidão sem ressarcimento dos valores aplicados.

Santa Cruz do Rio Pardo, em 1883, teve acontecimento emblemático. O delegado de polícia, Manoel Luiz de Souza, provocou a prisão de infelizes negros à noite reunidos na residência de certo Francisco José da Rosa, por estarem sob o ‘jugo do cativeiro’ e lhes era proibido reunirem-se à noite, pois que outro motivo não havia para aquela ação policial (Correio Paulistano, 04/01/1884: 2, matéria de 17/12/1883).

– Pagamento de dívidas com escravos alugados
Aos 04 de novembro de 1886, dona Maria Caetana de Oliveira, locadora, e o sr. Bernardino José de Andrade, locatário, celebram contrato de serviços escravos, à razão de duzentos mil reis por ano, cada um deles, até completar o pagamento de um conto e trinta e dois mil e novecentos e vinte reis, conforme documento de igual quantia, que nesta data firmou em favor do locatário, conjuntamente com o prêmio de um por cento ao mês, e que, por assim haver contratados os serviços de seus escravos José e Manoel e que deles fazia entrega ao locatário, para serem empregados em novo serviço a contar do dia oito de novembro, impedida a locadora de retirar os referidos escravos sem que tivesse pago a referida quantia e os prêmios que fossem contados.

Os dias de serviços não prestados seriam repostos em tempo oportuno. Ainda mais, o locatário obrigado a dar aos referidos escravos os vestuários grosseiros [de trabalho] e medicamentos, porém, tais despesas levadas em conta além da quantia acima mencionada (O Regional, edição especial, 1952), ou seja, apenas a alimentação como obrigação do locatário.

– Lei Áurea, quase sem ou nenhum escravo para libertar
Nenhum escravagista santa-cruzense teve prejuízos com a ‘Lei Áurea’, nem a escravidão local encerrou-se com o ato abolicionista, diante de artifício ou brecha na lei, se não ilegal ao menos imoral, que fez lucrar todos os donos de plantéis.

Meses antes da ‘Lei Áurea’, donos de plantéis sabiam prestes a abolição, e muitos concederam liberdade antecipada aos seus cativos, através de escritura lavrada em cartório, na qual o liberto comprometia-se prestar serviços gratuitos ao ex-dono, por tempo estipulado, a título de reparação, indenização ou alforria, sendo muitos documentos sem datas e assinaturas para uso posterior, caso necessário.

Aos 06 de abril de 1888, por exemplo, o fazendeiro santa-cruzense João Marques da Silva concedeu liberdade à escrava Victória, matriculada na coletoria de Santa Cruz do Rio Pardo, sob a condição dela prestar-lhe serviço gratuito pelo prazo de um ano. Para a escrava Victória, livre antecipadamente por documento oficial em 6 de abril de 1888, a escravatura terminou apenas em abril de 1889.

– A lei do ventre livre – péssimo negócio para os nascidos
A Lei do Ventre Livre, ou Lei Rio Branco, promulgada em 28 de setembro de 1871, que garantia liberdade para os nascidos e nascidas de mães escravas, a partir de então, seria medida certa de que, a longo prazo, garantiria o fim da escravidão negra no Brasil.

No entanto, os donos de plantéis usavam um recurso tacanho, forçando reprodução do homem negro com mulher indígena; a lei não dizia livre o filho de escravo e sim de mãe escrava, e, a índia aldeada numa fazenda, não era escrava, embora, sujeita à prestação compulsória de serviços gratuitos. Ainda mais, mesmo a criança negra nascida livre de mãe escravizada, permaneceria ao lado desta, sem nenhuma estrutura que lhe garantisse educação.

O tráfico interprovincial
Também, a emancipação dos escravos, através de recursos que os municípios adesistas receberiam, partes do governo central e provincial, para que tais recursos fossem rateados entre os senhores escravagista à medida que estes libertassem seus escravos, então gradativamente, daí, uma realidade documental, os ‘donos do poder’, Santa Cruz do Rio Pardo como exemplo, desviavam os recursos quanto a sua finalidade e não houve progresso na emancipação.

Ante as ameaças de auditorias, mais um ardil dos escravistas, o tráfico interprovincial, dando-se baixa no plantel de origem como se libertos fossem os escravos, enviando-os para outras regiões. Assim, durante os longos e sofridos anos 1870/1880, tempos da expansão cafeeira no oeste paulista, incrementou-se o tráfico interno de escravizados negros vindos do nordeste brasileiro, já considerados velhos para os canaviais, e das subjugadas engravidadas, trazendo consigo as crianças que as acompanhavam ou viriam nascer, libertas pela ‘Lei do Ventre Livre’, porém ‘presas’ ao lado da progenitora cativa, ou seja, ‘sob o jugo do cativeiro’.

Em 1885, a Lei dos Sexagenários, pela qual escravos e escravas, com mais de sessenta anos, ficariam livres, mostrou-se ineficaz, pois, raramente um escravo atingia tal idade, ademais, velhos e alquebrados, sem meios de subsistências e força de trabalho, nem aos quilombos interessavam.

No mês de maio do ano de 1888, enfim, a Lei Áurea – a lei da libertação; cientes disto, documentalmente, os senhores de plantéis anteciparam à lei e declararam livres os seus escravos mediante cláusula contratual de prestação de serviços gratuitos, a título de indenização. Piraju, por exemplo, fez uma lei nestes termos, em Santa Cruz contratos individuais. Depois, quando a consciência do trabalho livre com a força imigratória, os negros enfim libertos, foram ‘jogados’ nas periferias formando os bolsões da miséria e, ainda, hoje, lamentavelmente o negro sofre estigmas.

– Encerramento
Este foi o limbo da escravidão no Brasil que, também, atingiu Santa Cruz do Rio Pardo, exemplificado na mulata Innocencia Rodrigues da Conceição, nascida livre de mãe escrava, em 1875, para vivenciar,  por treze anos, não apenas as agruras dos escravizados, mas, também, as inconsequências da libertação pela ‘Lei Áurea’, permanecendo ela ao lado da mãe e de outros penalizados que nem tinham para onde ir, então ela, com muita biografia para contar, fundiu à sua a história de vida da própria mãe, dona Edwiges Maria Bezerra vinda ao mundo por volta de 1859. 

Dona Inocência, que as tradições e seus descendentes diziam baiana ou pernambucana, faleceu aos 21 de setembro de 1963, idade atribuída de 104 anos, ou seja, nascida em 1859; todavia, documento oficial eclesial de 1905, por declaração da própria, sua idade era de 30 [trinta] anos na ocasião, natural de Santa Cruz do Rio Pardo, portanto, à luz por volta de 1875, assim, idade de 88 anos quando lhe sobreveio o óbito. 

Inocência foi mulher muito conhecida, parteira renomada, caritativa, contando, entre os méritos lembrados, os cuidados que teve com a hanseniana Rita Generosa de Andrade, a Ritinha Emboava, considerada ‘santa popular’ santa-cruzense.

Responsáveis: Celso Prado e Junko Sato Prado – pradocel@gmail.com

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